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AOS QUERIDOS FOLIÕES e AMIGOS DO BLOCO ESCRAVOS DA MAUÁ

 

Há 30 anos, a Praça Mauá era bastante diferente do que agora é. Onde hoje está o Museu do Amanhã havia um píer interditado, abandonado. Um terminal rodoviário e uma delegacia da polícia civil ocupavam o prédio onde atualmente navega exuberante o MAR, Museu de Arte do Rio. O elevado da Perimetral e os maltratados armazéns portuários escondiam completamente a vista da Baía de Guanabara. A Mauá era um lugar de passagem cuja verdadeira identidade, construída mais de cem anos antes, andava escondida, perdida no trânsito dos que vinham e seguiam distraídos, para algum outro lugar.
 

O bloco Escravos da Mauá nasceu nessa época, agosto de 1992. Foi uma época muito triste no Rio, que culminou, em meados do ano seguinte, com as chacinas da Candelária e Vigário Geral.  Nasceu pela intuição de amigos que queriam ajudar, de algum modo, a reconectar a “cidade partida” e tinham vontade de reforçar a autoestima daquele lugar, onde trabalhavam todos os dias.
 

Apesar do abandono da região e do desconhecimento que afugentava a visitação por lá, história e patrimônio cultural viviam ali juntos, de mãos dadas, desde sempre, para quem se dispusesse a conhecê-los, de certa forma preservados pelo abandono. No casario antigo do Largo da Prainha, nos sobrados do Morro da Conceição, das ruas Sacadura e do Livramento, nos becos e colinas da Saúde e da Gamboa; nas pedras do cais antigo, pisadas por muitos outros antes de nós; na memória sofrida de tantos trabalhadores escravizados que construíram a maior parte das coisas que ainda hoje estão lá.
 

Pé ante pé, fomos percorrendo esse caminho, conhecendo a cada dia um pouquinho mais.  Aprendemos, principalmente, sobre a importância da herança cultural negra, nos ranchos, no samba e no choro, na dança, nos ritos, eventos, personagens e lugares, como a Pedra do Sal, da qual tivemos a honra de ser vizinhos, nos muitos eventos que fizemos no Largo de São Francisco da Prainha.
 

Em particular, para nós, que estávamos na condução de um bloco carnavalesco, a história do samba e de seus baluartes, João da Bahiana, Donga, Sinhô, Pixinguinha, Tia Ciata, tornaram-se enredos obrigatórios.  Foram 26 sambas feitos sob medida para celebrar essas raízes. Os infames navios negreiros e suas dores, o cais do Valongo e os armazéns da Camerino, os cortiços, o bota-abaixo, a Revolta da Vacina na praça da Harmonia, o Almirante Negro na Revolta da Chibata, a estiva, a formação do movimento sindical, a Rádio Nacional, as boates da Praça Mauá, a influência portuguesa e dos indígenas, os artistas de rua, a evolução urbana da cidade, a Central do Brasil, dentre tantas outras imagens e lembranças. Em 1998, ousamos registrar tudo isso no cd-rom Circuito Mauá: Saúde, Gamboa e Santo Cristo, hoje atualizado e reinventado no site que estamos inaugurando. Nesses 30 anos, desfilamos e cantamos estas histórias, em versos, na rua, festas e cortejos brincantes, em eventos públicos, sempre abertos, para todos. Livres.

Nas rodas de samba do bloco, estreladas pelos músicos amadores do Fabuloso Grupo Eu Canto Samba, pontificaram, além dos “fabulosos”, ninguém menos que Beth Carvalho, Aldir Blanc, Moacyr Luz, Claudio Camunguelo, Luiz Carlos da Vila, Walter Alfaiate, Zé Luiz do Império, Xangô da Mangueira, Zé da Velha, Simone Lial, dentre muitos outros artistas geniais que se apresentaram em nossos encontros de forma generosa, como todos ali. Além de toda uma turma jovem que cantou ou tocou, na Prainha, suas primeiras notas, como Elisa Addor e Tiago Prata (o Pratinha), hoje reconhecidos e queridos no mundo do samba.

Nos primeiros momentos, as rodas de samba aconteciam somente no pré-carnaval, com “infraestrutura” restrita ao Bar do seu Adão, que nos cedia os banheiros, e às barracas de bebidas do saudoso Marquim e do Eduardo Rua, moradores que sempre nos apoiaram, do jeito que podiam.  Depois, o samba passou a acontecer nas mesas do bar da Dona Sonia, na esquina da Sacadura Cabral, no térreo do sobrado que pegou fogo logo depois de uma de nossas rodas, destruindo, não só a nossa “sede”, como o belo mural de Donga, João da Bahiana e Pixinguinha que, da empena do prédio ao lado miravam a Prainha. Voltamos então pra calçada, onde permanecemos por muitos e muitos anos.

Ao longo desses 30 anos de Escravos da Mauá, tivemos a alegria máxima de ter nossos filhos, sobrinhos, amigos dos filhos e filhos dos amigos tocando e cantando nas rodas e no carro de som, ilustrando camisetas, empunhando a bandeira, registrando nossa história. E a emoção de um dia receber uma lista de 100 amigos, logo intitulados “nossos fabulosos patrocinadores” que contribuíram mensalmente com 10 reais durante alguns anos, para pagarmos o som e assim podermos estender pelo ano todo as rodas de samba, que também recolhiam leite em pó para creches locais, via Posto de Saúde. Uma corrente de solidariedade estabelecida desde o segundo ano do bloco, quando nos engajamos no combate à fome promovido pela Ação da Cidadania, e que segue até hoje atuante, apoiando projetos emergenciais na região portuária.

Foram momentos inesquecíveis de comunhão fraterna e desprendida. Amorosos. Juntos ali, sem nenhum outro interesse que não a esperança de uma sociedade justa, solidária. Amigos. Unidos pelo afeto, uma “prainha em alto-mar”.

Um pouco adiante, somaram-se a nós a arte da Companhia de Mysterios e Novidades, com seu belíssimo abre-alas em pernas de pau, o talento dos alunos e da equipe da Spectaculu, na confecção de lindos adereços para o desfile e os jovens fotógrafos da “Casa Amarela”, da Providência. Recebemos o carinho da comunidade local: tantos e tão queridos moradores que, sem querer deixar nenhum de fora, simbolizamos aqui na saudosa dona Vera, juntamente com seu Emídio, Jucy e Abilio, Juarez e seu Tide. Mas houve muitos outros...

Fomos muito bem recebidos, igualmente, pelos servidores de diversas instituições da área, em especial do Instituto Nacional de Tecnologia, de onde saíram nossos fundadores e o apoio moral e logístico de sempre. Tivemos o acolhimento de blocos tradicionais do lugar, da Liga Portuária, dos sindicatos do porto e da estiva, do Pólo Região Portuária, dos amigos do carnaval de rua, dos blocos da Sebastiana e das demais ligas cariocas.

Formou-se assim o nosso bloco: as porta-bandeiras Lea, Branca, Izair e Debora;  nossos mestre-salas Alexandre e Fernando; depois, nossa bateria-nota-dez, comandada primeiro pelo mestre Roberto Carlos, e em seguida, pelo querido Mestre Penha e sua/nossa rainha Michelle; então, inúmeros amigos-percussionistas vindos de outros blocos e cantos da cidade e, ao redor, dando sentido a tudo, um mundo de amigos, passistas e foliões.  Fomos centenas, milhares. Em certo momento, fomos quase vinte mil pessoas no desfile noturno. Hoje somos mais; na verdade, muitos mais.

Trinta anos depois da nossa chegada, a região que Heitor dos Prazeres um dia chamou de “Pequena África” é agora um território relativamente renovado. Sofrido, carente, desigual e com inúmeras demandas urbanas e sociais, mas com novas possibilidades e perspectivas. Blocos carnavalescos como o Coração das Meninas, o Cordão do Prata Preta, o Pinto Sarado, o Escorrega e a Banda da Conceição e muitos outros levam à região portuária gente de toda a cidade. A cultura negra que, historicamente, marca o território é potente, reivindica protagonismo, representação, lugar de fala e tem o justo desejo de construir suas próprias narrativas (como aquelas hoje expostas no belo Museu da História e da Cultura Afro-brasileira- MUHCAB).

Nosso bloco não foi o autor dessas mudanças. Mas nos orgulhamos de ter contribuído para que a região, a gente e a história do lugar fossem percebidas no seu verdadeiro valor, com o reconhecimento merecido por tantas lutas inglórias.

Houve muitos avanços; houve também retrocessos. Na região, na cidade, no país. Hoje, nos vemos em um momento político e social dos mais difíceis e aflitivos que já enfrentamos. Momento que nos convoca a ratificar nossa aposta na vida, na alegria, na amizade, na harmonia, na cultura, na diversidade, na liberdade e na solidariedade, valores nos quais buscamos nortear nossa trajetória nesses 30 anos. Momento em que nos unimos na esperança de uma mudança decisiva em nosso país e em nossas vidas e que, principalmente, enfrente a desigualdade social e os preconceitos de todas as naturezas.

Vemos assim com alegria, fé e muita esperança a chegada desses novos ares que trarão, certamente, espaços que precisam ser ocupados, desafios que atrairão novas paixões e a garra de muita gente jovem. Novos protagonistas, com a força e a legitimidade que são imprescindíveis para um novo tempo.

Entendemos que vem aí – que precisa vir! – um tempo de grande transformação. Entendemos que devemos nós também ser parte desta transformação.

Com base nesse sentimento de esperança no “futuro que sonhamos e cantamos, mas que, no duro, nem ainda começou”, fecharemos – com festa neste 17 de setembro e lançamento do site que registra essa longa caminhada – esse ciclo de 30 anos de desfiles do bloco Escravos da Mauá no calendário do carnaval carioca. Abertos, sempre, à possibilidade de que o futuro nos apresente novos ciclos, formatos e protagonistas!

Nos sentimos muito felizes e realizados por fazermos parte dessa grande rede de afetos que nunca se acabará.

Boa companhia faz o dia clarear!

(Em tempo: as rodas de samba do Fabuloso Grupo Eu Canto Samba, agora batizadas de Samba da Alegria Resistente, seguem pela cidade, lembrando e honrando a nossa história. Viva o Rio de Janeiro!)

 

Rio de Janeiro, agosto de 2022

 

Andrea Lessa

Claudia Baldarelli

Cristina Lemos

Eliane Costa

Izair Ramunch Costa

Maria Aparecida Stalliviere Neves

Pedro Muller

Ricardo Sarmento Costa

Teresa Guilhon

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